sábado, 24 de dezembro de 2011

CAPITAL, ANTIPSICÓTICOS E EDUCAÇÃO

Na última semana tive acesso a alguns textos e outras fontes sobre a questão do mercado de fármacos e suas estratégias de expansão. Dentre os destaques das estratégias imperiais desse ramo produtivo, estão os medicamentos antipsicóticos ou antidepressivos, amplamente conhecidos no âmbito educacional. Sobre esses últimos, trago nessa postagem alguns elementos para subsidiar um olhar crítico sobre a questão.
Não deveria ser novidade pra ninguém, mas vivemos na sociedade das mercadorias. Marx reafirmara na abertura de sua obra magistral – O Capital – que a riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em uma imensa acumulação de mercadorias. O decorrer de sua obra e seu método de análise nos permite observar o hoje a partir da categoria totalidade, que por sua vez, faz-nos observar que na sociedade das mercadorias, a medicina ou a produção dos fármacos se insere na reprodução ampliada – lucrativa – de capital.
Partindo desse pressuposto, podemos indicar alguns dados trazidos por fontes distintas. O primeiro é um texto compartilhado pelo Fórum de Saúde Popular do Paraná, intitulado "As doenças que mais venderão esse ano". Nesse texto há uma discussão sobre diversas doenças, a indústria farmacêutica e expansão do capital. O referido texto é uma reportagem Martha Rosenberg publicada no AlterNet e inicia com a seguinte provocação:

Como a indústria farmacêutica conseguiu que um terço da população dos Estados Unidos tome antidepressivos, estatinas, e estimulantes? Vendendo doenças como depressão, colesterol alto e refluxo gastrointestinal. Marketing impulsionado pela oferta, também conhecido como “existe um medicamento – precisa-se de uma doença e de pacientes”. Não apenas povoa a sociedade de hipocondríacos viciados em remédios, mas desvia os laboratórios do que deveria ser seu pepel essencial: desenvolver remédios reais para problemas médicos reais.

Segundo Rosenberg, há um receituário para a exploração produtiva das enfermidades. Essas últimas devem: 1) Existir de verdade, mas ser constatada num diagnóstico que tem margem de manobra, não dependendo de um exame preciso; 2) Ser potencialmente séria, com “sintomas silenciosos” que “só pioram” se a doença não for tratada; 3) Ser “pouco reconhecida”, “pouco relatada” e com “barreiras” ao tratamento; 4) Explicar problemas de saúde que o paciente teve anteriormente; 5) Precisar de uma nova droga cara que não possui equivalente genérico.
A partir dessa categorização, Rosenberg passa a discutir a expansão da exploração das seguintes enfermidades: déficit de atenção com hiperatividade em adultos, artrite reumatóide, fibromialgia, disfunções do sono e insônia depressiva.
A questão do déficit de atenção com hiperatividade em adultos é que chama a atenção. Sua forma de diagnóstico imprecisa, seu tratamento pouco pesquisado ou pouco conclusivo e a absoluta possibilidade de confusão entre sintomas de outras disfunções orgânicas – menopausa, alzheimer, depressão – e DDAH são alarmantes e preocupantes. O fato é que há uma preocupação dos laboratórios na perda de pacientes quanto se atinge a idade adulta por abandono de tratamento. Daí os novos esforços – investimento privado em pesquisas, formação aos médicos para que diagnostiquem essas disfunções, além estímulo capital aos mesmos para que receitem os fármacos produzidos para esses fins – por parte das corporações farmacêuticas.
Mas, continua Rosenberg, para assegurar-se de que ninguém pense que a DDAH é uma doença inventada, o WebMD mostra ressonâncias magnéticas coloridas de cérebros de pessoas normais e de pacientes com DDAH acompanhada, claro, de um anúncio de Vyvanse. Dr. Phillip Sinaikin, autor de Psychiatryland, diz ser duvidoso se as duas imagens são realmente diferentes. E mesmo que fossem, isso não provaria nada, afirma o psiquiatra. Segundo Sinaikin

não avançamos muito além da frenologia, e esse artigo do WebMD é simplesmente o pior tipo de manipulação da indústria farmacêutica a fim de vender seus produtos extremamente caros. Nesse caso, um esforço desesperado da Shire para manter uma parte do mercado quando o Addreall tiver versão genérica.

Curiosamente, na edição deste mês do Le Monde Diplomatique Brasil há um interessante texto sobre "O florescente mercado das desordens psicológicas nos EUA". Nessa reportagem, Olivier Appaix, inicia descrevendo a cena de um garoto de onze anos recebendo seu diagnostico de depressão e bipolaridade por meio do exame de Ressonância Magnética – procedimento de alto custo em qualquer lugar capitalista do mundo – em que se recorre às diferentes colorações cerebrais. Sim, esse sistema diagnóstico criticado acima por Sinaikin.
Segundo Appaix, os critérios para definição dos desvios ou transtornos considerados patológicos são enunciados pelo Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, cartilha absoluta entre os médicos estadunidenses e cada vez mais em outros lugares do mundo. Afirma o economista que a proporção de pessoas inseridas nos quadros governamentais de auxílio financeiro por problemas mentais severos aumenta diariamente com adultos e crianças.

No entanto, os testes clínicos realizados nos adultos se revelam bem pouco conclusivos quanto aos benefícios a longo prazo das resposta farmacoterapêutica às doenças mentais. Se, em algumas semanas, reações positivas podem aparecer (geralmente equivalentes, no entanto, àquelas provocadas pelos placebos), os efeitos por um período mais longo incluem alterações irreversíveis do cérebro e discinesias tardias – movimentos incontroláveis do rosto, principalmente da mandíbula e a protusão repetitiva da língua (APPAIX, 2011, p. 26).


Os laboratórios investem então na ampla propaganda de seus diagnósticos e medicamentos. “Você precisa de medicamentos como o diabético necessita de insulina”, afirmam. Também investem na deslegitimação de pesquisadores críticos e omitem dados de suas próprias pesquisas como, por exemplo, o aumento do risco de suicídio nos pacientes adolescentes usuários do Paxil.

Os estudos longitudinais (que não são feitos pelos laboratórios) mostram que os efeitos dos antipsicóticos param com o tempo, que as crises reaparecem, frequentemente mais fortes, e que os sintomas se agravam, ainda mais que nos pacientes tratados com placebos. Os profissionais concluem com base nisso, que as doses são insuficientes, ou a terapia é inapropriada; passam então para algo mais forte (APPAIX, 2011, p. 27).

Vejam que interessante fonte e ilustração o site askapatient.com, citado em artigos sobre a questão farmacológica. Nele, pacientes relatam os efeitos dos medicamentos e outras situações sobre suas doenças. Uma velha conhecida nossa é a "ritalina", em inglês Focalin, Methadate, Ritalin SR/LA, Daytrana. Por Ritalin encontrei diversos relatos e transcrevo dois abaixo, a título de exemplo.

When I was on Ritalin, I was like a zombie. It's the best way to describe it. Eventually I built up such a tolerance my father was worried that it would adversly effect me and got me on a different drug. I'm trying to spread the word. This drug is BAD. All of my side effect symptoms remain, it's 11 years later. The drug damages the brain in a chemical fashion, your brain does not heal from it.

I have been on Ritalin for almost 20 years. At first it seemed like a miracle drug but I now see this drug could have destroyed me. I had almost all the side effects. I began abusing it soon after I started taking it. Some nights I would stay up all night (occasionally playing on line backgammon for 12 straight hours) my boyfriend commented that he could see a change in my facial movements. It was incredibly easy to get highest allowable dosage. Granted, I could clean the he'll out of my kitchen, but the cost was way way too high. Wish I never took it. Closets may have been a little messy but my life wouldn't be a disaster.

Appaix afirma que o encorajamento por parte dos laboratórios e médicos para o consumo prolongado de antipsicóticos é crescente. Por outro lado, o tratamento sem os mesmos não se reconhece com a mesma frequência, nem em eventos, nem em pesquisas, nem em investimentos, tampouco nas mídias usadas pelos mesmos para divulgação de suas atividades produtivas. É o caso em que as relações sociais de produção de capital subsumem em acordo com seus interesses a vida e a existência humana.
Num polo de capital menos robusto, afirma o economista, há o aparecimento de estudos longitudinais que estabelecem superioridade do tratamento das doenças mentais sem produtos farmacêuticos, incluindo a esquizofrenia.
Déficit de atenção, hiperatividade, bipolaridade, depressão. Essas são as bolas da vez da indústria. Seus tratamentos têm comprovação econômica factível. Só não se pode dizer o mesmo sobre a positividade médica de seus resultados.
Considero bastante profícua essa discussão, notadamente para educadores, que se deparam diuturnamente com a medicalização da infância assim como com a impotência diante de comportamentos que não podemos compreender.
Em outras palavras, enquanto educadores, colocamo-nos diante de uma imagem paradoxal. Alunos e alunas com aprendizagem comprometida, que por vezes apresentam comportamentos que fogem a nossa capacidade instrumental de ensinar e estes são encaminhados para avaliações psicoeducacionais e por vezes, retornam com suas prescrições de antipsicóticos. O fundamento que baliza a intervenção dos educadores nesses casos me parece essencialmente sua própria função, a apreensão dos conteúdos por parte do alunado. Mas que, diante da impotência de sua realização por meios didático-pedagógicos, recorre-se ao trabalho interdisciplinar e ao mesmo tempo, ao risco de contribuir para a engrenagem capitalista de medicalização e mercantilização da vida.
Mas, como agir diante dessa imagem paradoxal no campo educacional e até mesmo no âmbito pessoal? A crítica da realidade com base em sua historicidade, totalidade e contradições pode ser uma ferramenta das mais importantes. Buscar as mediações entre as possíveis disfunções mentais, a organização social capitalista, a indústria dos fármacos e a necessidade de uma educação emancipatória parece ser tarefa fundamental aos educadores críticos.


OUTRAS CONTRIBUIÇÕES

Um pouco das discussões e elementos apresentados nesse texto, foram postadas por mim em uma das redes sociais. Dessas, algumas companheiras e companheiros emitiram suas opiniões, assim como indicaram leituras importantes. Sistematizo-as a seguir.
Há um livro de Maria Rita Khel que toma o assunto. Intitulado "O tempo e o cão: a atualidade das depressões". A obra foi vencedora do prêmio Jabuti de “Melhor Livro do Ano de Não Ficção” em 2010 e aponta relações da psicanálise e a ação dos mecanismos sociais sobre a subjetividade humana. Conheça o livro clicando aqui.
Outra importante contribuição é o Manifesto do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Afirma o manifesto que a sociedade brasileira vive um processo crescente de medicalização de todas as esferas da vida.

Entende-se por medicalização o processo que transforma, artificialmente, questões não médicas em problemas médicos. Problemas de diferentes ordens são apresentados como “doenças”, “transtornos”, “distúrbios” que escamoteiam as grandes questões políticas, sociais, culturais, afetivas que afligem a vida das pessoas. Questões coletivas são tomadas como individuais; problemas sociais e políticos são tornados biológicos. Nesse processo, que gera sofrimento psíquico, a pessoa e sua família são responsabilizadas pelos problemas, enquanto governos, autoridades e profissionais são eximidos de suas responsabilidades [...].

A aprendizagem e os modos de ser e agir – campos de grande complexidade e diversidade – têm sido alvos preferenciais da medicalização. Cabe destacar que, historicamente, é a partir de insatisfações e questionamentos que se constituem possibilidades de mudança nas formas de ordenação social e de superação de preconceitos e desigualdades. O estigma da “doença” faz uma segunda exclusão dos já excluídos – social, afetiva, educacionalmente – protegida por discursos de inclusão (MANIFESTO, 2010).

Nesse contexto é que se constituiu o Fórum tendo como objetivos articular entidades, grupos e pessoas para o enfrentamento e superação do fenômeno da medicalização, bem como mobilizar a sociedade para a crítica à medicalização da aprendizagem e do comportamento. Consulte o manifesto completo aqui.
Há também uma pesquisa publicada na Revista Brasileira de Psiquiatria Clínica sobre o retorno das prescrições da ritalina. Realizada com oitocentos e noventa e dois médicos, entre eles neurologistas e psiquiatras que responderam a um questionário sobre a prescrição do metilfenidato para o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Segundo o estudo, a maioria dos médicos relatou a ocorrência esporádica de reações adversas não-sérias, tais como dor de cabeça, emagrecimento, inapetência, hiperexcitabilidade e taquicardia. Apenas seis médicos, por outro lado, relataram casos que poderiam levar à suspeita de dependência, embora nenhum deles satisfizesse os critérios da CID para tal. Esse artigo acaba por discutir adiante a necessidade do receituário diferenciado para a prescrição da droga, na busca por amenizar problemas de prescrição do mesmo. Consulte o artigo completo aqui.
Ainda se faz oportuno evocar, que nessa discussão não tratamos de realizar uma espécie de demonização da psiquiatria, mas sim de buscar elementos para análise da mesma na conjuntura do capital.
A realidade que temos na escola, por exemplo, precisa ser analisada na totalidade sócio-histórica que a compõe, para não cairmos nos engodos e encantos da sociedade das mercadorias. Todavia, não podemos deixar de utilizar avanços da medicina – e da reflexão interdisciplinar sobre a saúde coletiva – para garantir o aprendizado dos alunos com transtornos sócio-psíquicos diversos.

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